Há livros que atravessam nossa vida como uma brisa leve, alguns nos entretêm e outros que nos informam, mas sabe aqueles raros, que nos leem, nos decifram e tocam num ponto tão íntimo que parece que alguém ali do outro lado da página nos conhece melhor do que nós mesmos. Essa série nasce do encontro com esse último tipo de livro — os que chegam para transformar, escancarar portas fechadas, dar nome ao indizível e convocar a alma à superfície.
“Páginas que Transformam” não é só uma série de análises, ela pretende ser um mergulho, um convite à escuta mais profunda das palavras que, mesmo silenciosas, gritam dentro da gente. Aqui, cada post será dedicado a um desses encontros, com livros inteiros ou com capítulos que valem por um universo. A proposta é olhar com atenção, extrair a essência, fazer conexão com outras obras e com a vida.
A proposta aqui é caminhar pelas páginas com os pés descalços, permitindo que a leitura nos atravesse por inteiro. E para começar essa jornada, nenhum título seria mais adequado do que “Mulheres que Correm com os Lobos”, da psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés. Publicado originalmente em 1992, esse livro cruzou gerações, países e contextos com a mesma força — porque fala de algo ancestral, arquetípico, que pulsa dentro de todas as mulheres, mesmo daquelas que ainda não se deram conta disso.
A autora se dirige à alma feminina com a delicadeza de quem entende sua profundidade, mas também com a ousadia de quem não teme tocar as feridas que nos foram impostas — culturalmente, psicologicamente, espiritualmente.
A introdução do livro já é, por si só, um rito de passagem. É nela que Clarissa apresenta o conceito da Mulher Selvagem, não como um ideal a ser atingido, mas como uma presença viva que habita cada mulher e que pode ser reencontrada. Essa mulher interior, instintiva, criativa, intuitiva, livre, que foi sendo abafada ao longo do tempo, soterrada sob regras, culpas, papéis impostos, repetições familiares e sociais. Mas ela continua ali, esperando que nos lembremos dela.
Clarissa nos explica que essa natureza selvagem não tem relação com descontrole ou desorganização, mas com autenticidade, com a capacidade de escutar a própria alma, de seguir a intuição, de criar com liberdade, de amar com verdade, de proteger com firmeza, de perceber o que está vivo ou morrendo dentro de si — e de agir a partir disso. A Mulher Selvagem é aquela que sente o cheiro do que é bom e do que é perigoso, que conhece os ciclos, que sangra e floresce. É aquela que sabe.
E por que ela foi esquecida? Porque vivemos em culturas que ensinaram as mulheres a agradar, a servir, a obedecer, a se calar. Culturas que elogiam a docilidade, a contenção, o sacrifício e que premiam a mulher “comportada”, mesmo que isso signifique que ela precise trair a si mesma todos os dias. E, assim, fomos nos afastando do nosso eixo. Nos tornando boas para o mundo, mas estranhas para nós mesmas.
A introdução também apresenta a proposta metodológica do livro: a utilização de contos de fadas e histórias tradicionais como ferramentas para acessar os arquétipos femininos profundos. A autora, que também é contadora de histórias, acredita que essas narrativas ancestrais carregam códigos que ultrapassam o tempo e que falam diretamente ao inconsciente. Cada conto analisado no livro funciona como uma chave — uma chave que abre portas para regiões esquecidas da alma feminina.
Nesse espaço simbólico, o que importa não é a literalidade da história, mas sua essência psíquica. Os personagens representam aspectos internos, as situações falam de dilemas universais. E assim, Clarissa vai desmontando, com sensibilidade e rigor, os nós que nos impedem de ser inteiras.
Ler a introdução de Mulheres que Correm com os Lobos é sentir-se chamada. É como se, ao virar cada página, uma parte esquecida de nós fosse sendo tocada, reanimada, convidada a voltar à superfície. A autora nos olha nos olhos e diz: “Eu vejo você. Eu conheço esse cansaço. Eu sei o que foi perdido. Mas também sei como encontrar o caminho de volta.”
Essa primeira leitura não exige pressa, mas presença. Porque ela é mais do que um convite para seguir adiante no livro — ela já é, em si, uma travessia. É o chamado para o resgate da alma, para a escuta do instinto, para o retorno ao feminino profundo.
A partir do próximo post, mergulharemos em um dos contos analisados por Clarissa e iniciaremos nossa jornada pela alma feminina. E, como toda caminhada que vale a pena, ela começa com um encontro: entre nós e aquilo que fomos treinadas a esquecer.
Que esta série nos acompanhe com beleza, coragem e verdade.
E que, página após página, a gente possa se lembrar de quem sempre fomos.
Seja bem-vinda, porque aqui corremos com os lobos!